
A lei anticrime e a violação às prerrogativas da advocacia e direitos dos cidadãos
Fernando Borges Vieira[i]
Em 19 de fevereiro passado o Ministro da Justiça e Segurança Pública, Sérgio Fernando Moro, protocolizou junto ao Congresso Nacional o denominado “Projeto de Lei Anticrime”, por meio do qual pretende a reforma de 14 ordenamentos jurídicos, dentre os quais o Código Penal, o Código de Processo Penal, a Lei de Execução Penal, a Lei de Crimes Hediondos e o Código Eleitoral, dentre outros.
Poder-se-ia tecer muitas críticas ao projeto – uma adaptação açodada das “10 Medidas Contra a Corrupção” defendidas pelo Ministério Público Federal –, não apenas e tão somente por olvidar a necessidade de um estudo criminológico antecedente ou até mesmo a própria dogmática penal, mas, sobretudo, por violar preceitos fundamentais.
Em um Estado Democrático de Direito, no qual se preserva o respeito pelos direitos humanos e garantias fundamentais, a maior autoridade – dentre todas! – é o cidadão. O projeto em comento altera a Lei 11.671/2008, a qual trata do regime jurídico dos presídios federais, acabando por ferir frontalmente os direitos dos cidadãos e a violar as prerrogativas da advocacia ao estabelecer novo regramento, segundo o qual os advogados terão contato com seus clientes, no parlatório, por meio de monitoramento de áudio e vídeo.
Em que pese a previsão de que as gravações de atendimentos de advogados apenas possam ser gravadas pode decisão judicial fundamentada; quem pode garantir que a conversa não está sendo ouvida e até mesmo gravada de forma clandestina?
Com a devida vênia, para o pleno exercício da ampla defesa em processo penal se faz imprescindível ao defendente reunir-se com seu advogado para que este possa lhe transmitir todas as informações necessárias sobre o caso, de forma a se deduzir a melhor solução jurídica para o seu problema.
Constata-se, com base em tais premissas, que o direito do preso se entrevistar com seu advogado possui contornos de verdadeira garantia. E assim foi definida pela Convenção Americana de Direitos Humanos — Pacto de San José da Costa Rica — em seu artigo 8º, 6º inciso, ao situar entre as “garantias judiciais” o direito ao acusado de defender-se pessoalmente ou de ser assistido por um defensor de sua escolha e de comunicar-se, livremente e em particular, com seu defensor.
Se não o bastante, o inciso III do artigo 7º do Estatuto da Advocacia e da Ordem dos Advogados do Brasil (Lei 8.906/94) prevê ser direito do advogado comunicar-se com seus clientes, pessoal e reservadamente, mesmo sem procuração, quando estes se acharem presos, detidos ou recolhidos em estabelecimentos civis ou militares, ainda que considerados incomunicáveis.
Ainda se não o bastante, o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária editou resolução – publicada no DOU em 08/06/06 – asseverando que o parlatório ou ambiente equivalente onde se der a entrevista, não poderá ser monitorado por meio eletrônico de qualquer natureza.
Importante salientar que o próprio Supremo Tribunal Federal, conforme voto do Ministro Celso de Mello nos autos da extradição de Cesare Battisti, pronunciou-se ao atender o pedido do advogado Antônio Nabor Areias Bulhões:
DESPACHO: Ao apreciar pedido formulado pelo Senhor Advogado do ora extraditando, que invocou a prerrogativa profissional que lhe assegura o art. 7º, III, da Lei nº 8.906/94 (fls. 21), vim a deferir tal postulação, autorizando-o, nos termos do Estatuto da Advocacia, a comunicar-se e a avistar-se, reservadamente, com o seu cliente, Cesare Battisti (…), no local em que custodiado, (…) sem as limitações naturais impostas pela própria estrutura física do locutório da carceragem da Superintendência Regional do Departamento de Polícia Federal no Distrito Federal, de modo a que, sem qualquer barreira ou obstáculo, possam, advogado e cliente, juntos, manusear cópia dos autos do pedido de extradição, a fim que a defesa possa instruir-se a propósito dos fatos atribuídos ao extraditando, ocorridos fora do Território Nacional (…) (fls. 20).
Possível perceber, trata-se de prerrogativa do advogado e de direito de seu cliente manter conversa reservada e é oportuno compreender a razão pela qual tal condição é tão relevante.
Ao contrário do que muitos chegam a pensar, os encontros entre advogados e clientes em instituições penais ou policias não se presta para outro fim se não o de possibilitar que estes possam, sem receio algum, dizer a verdade àquele que patrocinará sua defesa.
Além do mais, estes momentos se prestam também para que o cliente possa relatar ao advogado que o assiste eventual ameaça que possa estar sofrendo ou eventual tratamento inadequado que possa estar sendo dispensado ao mesmo.
Por conseguinte, se a conversa entre o advogado e seu cliente puder ser ouvida, certamente não poderá ser franca como deveria e a ampla defesa estará comprometida diante da possibilidade de que a verdade venha a ser sonegada.
Assim, a permissão de escuta ou interceptação de conversas reservadas entre advogados e clientes não viola apenas as prerrogativas dos advogados, mas o próprio direito do cidadão.
É preciso, pois, ter um olhar crítico sobre o projeto da Lei Anticrime, não se permitindo a violação de direitos e prerrogativas em nome de vontade política qualquer.
Por fim, cabe ao Estado proteger os direitos conferidos aos cidadãos e jamais olvidá-los, lembrando-se que a violação do direito de um cidadão afigura ameaça ao direito de toda sociedade.
A Ordem dos Advogados do Brasil e suas Seções, bem como muitos outros institutos e associações já se pronunciaram contra esta e tantas outras arbitrariedades, cabendo ao Congresso Nacional aparar as arestas de um projeto de lei equivocado em grande parte de suas proposituras.
[i] Advogado desde 1997 – OAB/SP 147.519 e OAB/RJ 213.221 – Sócio Administrador de Fernando Borges Vieira Sociedade de Advogados e Owner e Legal Coach de Lawyers Coaching/Desenvolvimento de Performance e Competências Jurídicas – Conselheiro Secional da OAB/SP – Especialista em Compliance (Insper) – Especialista em Compliance Anticorrupção (LEC) – Especialista em Liderança (FGV – GVlaw) – Especialista em Direito Processual Civil (CPPG/FMU) – Certificado em Compliance Anticorrupção (LEC) – Personal, Professional e Leader Coach pela Sociedade Brasileira de Coaching (SBC) – Professor de Pós-Graduação Direito Processual do Trabalho– Associado Instituto dos Advogados de São Paulo (IASP) – Associado à Associação dos Advogados de São Paulo (AASP) – Associado à Associação Brasileira dos Advogados Trabalhistas (ABRAT) – Associado à Associação dos Advogados Trabalhistas do Estado de São Paulo (AATSP) – Associado ao Instituto Brasileiro de Compliance (IBC) – Associado ao Instituto de Compliance do Brasil (ICB) – Palestrante OAB/SP e Escola Paulista de Advocacia – Autor e coautor de obras e relevantes artigos jurídicos.
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