
COVID-19 e a exigência do nexo causal para reconhecimento de doença ocupacional
Fernando Borges Vieira[1]
Desde março de 2020 está suspensa a eficácia do artigo 29 da Medida Provisória 927/2020:
Art. 29. Os casos de contaminação pelo coronavírus (covid-19) não serão considerados ocupacionais, exceto mediante comprovação do nexo causal.
Tal suspensão decorre de decisão liminar concedida pelo Supremo Tribunal Federal concedeu, deixando de prevalecer (precariamente) a compreensão de que os casos de contaminação pelo Coronavírus (COVID-19) seriam considerados doença ocupacional apenas diante da comprovação do nexo causal; vale dizer, apenas quando demonstrada que a contaminação teve por causa ação ou omissão por parte do empregado.
Nada obstante, certo é que a legislação previdenciária está em vigor, à luz da qual a caracterização como acidente do trabalho por eventual contaminação pelo Coronavírus depende da análise da Lei 8.213/91, e Decreto 3.048/99.
A legislação previdenciária considera “doença ocupacional” como gênero, do qual decorrem a doença profissional ou do trabalho, cujo enquadramento exige a comprovação de nexo causal.
À luz do artigo 20 da Lei 8.213/91, equipara-se ao acidente do trabalho a doença profissional e doença ocupacional, sedo que:
- a) a doença profissional, assim entendida a produzida ou desencadeada pelo exercício do trabalho peculiar a determinada atividade e constante da respectiva relação elaborada pelo órgão ministerial; e
- b) a doença do trabalho, assim entendida a adquirida ou desencadeada em função de condições especiais em que o trabalho é realizado e com ele se relacione diretamente, constante da relação mencionada na letra “a”.
Por corolário, para que referida equiparação seja reconhecida, a doença profissional há de constar da relação elaborada pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS).
Ainda, o inciso III do artigo 21 Lei 8.213/91 prevê a equiparação ao acidente de trabalho:
III) – a doença proveniente de contaminação acidental do empregado no exercício de sua atividade.
Por se tratar de doença descoberta recentemente, a COVID 19 não consta na relação de doenças profissionais elaborada pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS).
Entretanto, na hipótese de contaminação a COVID-19 resultar das condições especiais em que o trabalho é executado e com ele se relaciona diretamente, conforme prevê o § 2º do artigo 21 da lei 8.213/91, poderá ser observada a equiparação em tela.
Assim, para que reste comprovado que a contaminação se deu – efetivamente – em função de condições especiais em que o trabalho é realizado e com ele se relacione diretamente.
No dia 11 de dezembro de 2020 foi formalizada a Nota Técnica SEI nº 56376/2020/ME, que tem por finalidade esclarecer as regras aplicáveis à análise do nexo entre a Covid-19 e o trabalho para fins de concessão de benefício previdenciário.
A Nota Técnica foi elaborada à luz da legislação previdenciária, para esclarecer a interpretação que deverá ser aplicada quando da concessão de benefícios, ou seja, quando o segurado for submetido a uma avaliação da Perícia Médica Federal, responsável pela caracterização técnica do nexo entre o trabalho e o agravo.
Conforme referida nota técnica, a depender do contexto fático-probatório, a Covid-19 pode ser reconhecida como doença ocupacional, aplicando-se na espécie o disposto no § 2º do artigo 20 da Lei nº 8.213, de 1991, quando a doença resulta das condições especiais em que o trabalho é executado e com ele se relaciona diretamente.
A contaminação pode, ainda, constituir acidente de trabalho por doença equiparada, na hipótese em que a doença seja proveniente de contaminação acidental do empregado pelo vírus SARS-CoV-2, no exercício de sua atividade, nos termos do inciso III do artigo 21 da Lei nº 8.213/91.
Imperioso ressaltar que o Supremo Tribunal Federal decidiu que cabe ao empregador comprovar que a doença não foi adquirida pelo empregado no ambiente do trabalho.
Desta forma, recomenda-se às empresas que se utilizem de todos os meios disponíveis e recomendados pela Organização Mundial da Saúde e Ministério da Saúde para a segurança de seus empregados.
Entre as medidas de prevenção – conforme Lucas Eduardo Oliveira[2] – por exemplo, as seguintes:
- a) entregar equipamentos de proteção individual (EPI ’s), como máscaras e álcool e em gel, mediante recibo do empregado; b) manter a ficha de EPI ‘s atualizada; c) elaborar relatório fotográfico detalhado das medidas adotadas na empresa; d) enviar periodicamente orientações sobre as rotinas de trabalho e segurança; e) organizar escala de horário de trabalho, de forma a evitar que os empregados utilizem o transporte público em horário de pico; f) controlar o acesso de consumidores, e evitar aglomeração dentro do estabelecimento comercial; g) ampliação de limpeza e desinfecção dos locais de trabalho; h) melhorar a ventilação natural, sempre que possível; i) registrar todas essas medidas tomadas, para, em eventual discussão administrativa ou judicial futura; j) cumprir todas as determinações dos órgãos públicos.
No entanto, defendemos que a caracterização como doença ocupacional dependerá dos elementos do caso concreto, observados os artigos 20 e 21 da Lei 8.213/91, sendo indispensável a realização de perícia médica.
Entre os procedimentos para caracterização do nexo causal é a perícia médica baseada no histórico ocupacional do trabalhador. Para auxiliar na perícia médica se faz necessário a apresentação da seguinte documentação e informações: 1. Atestado e Relatório Médico; 2. Emissão da CAT; 3. Exames laboratórios; 4. Exames complementares; 5. Importante apresentar informações sobre a vida laboral: a) Profissão/ocupação, relação no mercado de trabalho atual (ativo, desempregado, desvio de função), experiências prévias, vínculos de trabalho atual e anteriores b) Descrição da ocupação atual: cargo, função, carga horária, atividades desenvolvidas. c) Descrição do ambiente de trabalho: exposição a agentes nocivos físicos, químicos e biológicos; riscos de acidentes; condições ergonômicas (más posturas, trabalhos forçados/repetitivos, ritmo de trabalho penoso, relação com maquinários, produtos e subprodutos, condição do mobiliário, da iluminação e da ventilação, processo organizacional trabalho, demandas psicofisiológicas e exigências cognitivas); e d) uso de EPC e/ou EPI.
Além da história clínica ocupacional acima citada, a perícia poderá se utilizar, conforme o caso, de outros elementos, tais como: a) Perfil Profissiográfico Previdenciário – PPP/Análise de função; b) Atestados de Saúde Ocupacional – ASO; c) Programa de Prevenção de Riscos Ambientais – PPRA; d) Programa de Controle Médico de Saúde Ocupacional – PCMSO; e) vínculos empregatícios anteriores; f) exames complementares; g) atestado médico; h) dados epidemiológicos; i) literatura atualizada; j) depoimento e experiência dos trabalhadores; k) vistoria no local de trabalho; l) conhecimentos e práticas de outras disciplinas e de seus profissionais, sejam ou não da área da saúde; e m) Programa de Condições e Meio Ambiente de Trabalho na Indústria da Construção Civil – PCMAT
Neste passo, o enquadramento da Covid-19 como doença ocupacional demanda comprovação de elementos no sentido de que a doença resultou de condições especiais em que o trabalho foi executado além de estar diretamente relacionada ao mesmo.
O nexo causal é um termo técnico utilizado para o estabelecimento entre a doença e o trabalho que tem por finalidade a o controle e a prevenção de doenças e o provimento de direitos trabalhistas e previdenciários.
A Previdência Social normatizou por meio do Nexo Técnico Previdenciário (NTEP) três espécies para caracterização da relação causal entre a doença e o trabalho sendo elas:
I – nexo técnico profissional ou do trabalho, fundamentado nas associações entre patologias e exposições constantes das listas A e B do anexo II do Decreto nº 3.048/99;
II – nexo técnico por doença equiparada a acidente de trabalho ou nexo técnico individual, decorrente de acidentes de trabalho típicos ou de trajeto, bem como de condições especiais em que o trabalho é realizado e com ele relacionado diretamente, nos termos do § 2º do art. 20 da Lei nº 8.213/91; e
III – nexo técnico epidemiológico previdenciário, aplicável quando houver significância estatística da associação entre o código da Classificação Internacional de Doenças-CID, e o da Classificação Nacional de Atividade Econômica-CNAE, na parte inserida pelo Decreto nº 6.042/07, na lista B do anexo II do Decreto nº 3.048/99.
Em decisão proferida pelo Tribunal Regional do Trabalho da 18ª Região nos autos ROT-0010736-32.2020.5.18.0008 – movida por técnico de enfermagem – reconheceu a necessidade de reconhecimento do nexo causal[3]:
Conforme os autos, o técnico de enfermagem foi dispensado do serviço dias após retornar da licença para tratamento da covid-19. Ele ajuizou uma ação na Justiça do Trabalho pretendendo a nulidade da dispensa, diante da existência de doença ocupacional, e sua reintegração aos quadros da cooperativa de saúde ou indenização do período de estabilidade provisória.
No primeiro grau, seu pedido foi indeferido e, inconformado, ele recorreu ao segundo grau sob a alegação de que foram produzidas provas que confirmam a responsabilidade da cooperativa pelo contágio pelo novo coronavírus.
O caso foi analisado pelo desembargador Gentil Pio, relator. Ele observou que, apesar do inconformismo do reclamante, a sentença da 8ª Vara do Trabalho de Goiânia está em consonância com as provas constantes dos autos e a legislação pertinente, não merecendo reforma.
O relator destacou fundamentos da sentença no sentido de que a caracterização do nexo causal entre a enfermidade e o labor, em regra, é ônus do empregado, por se tratar de fato constitutivo do direito à estabilidade provisória. Ele ainda mencionou o artigo 29 da Medida Provisória 927/2020, vigente no período de 22/3/2020 a 19/7/2020, que dispunha que “os casos de contaminação pelo coronavírus (covid-19) não serão considerados ocupacionais, exceto mediante comprovação do nexo causal”.
Gentil Pio pontuou, no entanto, que o STF suspendeu a validade desse dispositivo, o que importa na não caracterização automática do nexo causal, “recaindo sobre o empregador o encargo de comprovar que a doença não foi adquirida no ambiente de trabalho ou em razão dele, invertendo-se, portanto, o ônus probatório no caso específico de infecção pelo coronavírus”.
O desembargador-relator observou que a empresa comprovou que, embora o reclamante exercesse a função de técnico de enfermagem, não trabalhava em ambiente hospitalar ou diretamente com pacientes em tratamento da covid-19, já que fazia o atendimento a apenas um paciente, em home care, o qual foi testado e não contraiu a doença.
Gentil Pio também pontuou que a esposa do reclamante, enfermeira, laborava em dois hospitais que atuavam no tratamento da covid-19 e que as provas constantes dos autos, ao contrário do que alegou o autor, demonstraram que ela manifestou os sintomas da doença antes dele. Portanto, não havendo como estabelecer o nexo causal da doença contraída pelo autor com o trabalho desenvolvido na reclamada, não há como responsabilizar o empregador e deferir os pleitos formulados na inicial, concluiu.
Por fim, cabe ressaltar que o Ministério da Economia, por meio da Secretaria Especial de Previdência e Trabalho, divulgou a Nota Técnica SEI nº 56376/2020/ME, de cunho orientador, com o objetivo de esclarecer acerca da adequada interpretação jurídica a ser dada aos artigos 19 a 23 da Lei 8.213/1991 no que tange à análise e configuração do nexo entre o trabalho e a Covid-19.
O texto conclui que:
- Será doença ocupacional (ou profissional) quando a doença resultar das condições especiais em que o trabalho é executado (art. 20, parágrafo 2º, Lei n.º 8.213/1991); e
- Será doença ocupacional na hipótese de doença decorrer de uma contaminação acidental do empregado pela Covid-19 (art. 21, III, Lei n.º 8.213/1991).
Em qualquer uma dessas duas hipóteses, a perícia médica é que deverá caracterizar tecnicamente a identificação do nexo causal entre o trabalho e a doença.
Com esses esclarecimentos prestados pelo Ministério da Economia, a abertura de Comunicado de Acidente de Trabalho (CAT) por infecção de Covid-19 deverá ser feita somente posterior declaração de nexo causal pela perícia médica do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS).
Não basta, pois, a mera alegação por parte do empregado de que contraiu a Covid-1 em razão de seu trabalho, é preciso verificar as medidas médico-sanitárias adotadas pelo empregador e o nexo de causalidade entre a patologia e o trabalho exercido. Se assim não fosse, se bastasse a mera alegação, qualquer empregado poderia pleitear o reconhecimento de doença ocupacional, o que não se pode admitir.
Por fim, sempre há de ser observado em juízo que o ônus da prova compete à parte que fizer a alegação (CLT, art. 818) e ao autor compete provar os fatos constitutivos de seu direito (CPC, art. 373, I), razão pela qual competirá ao empregado o encargo probatório quanto ao nexo de causalidade.
[1] Advogado desde 1997 – OAB/SP 147.519, OAB/MG 189.867, OAB/PR 94.745, OAB/RJ 213.221 – Sócio Administrador de Fernando Borges Vieira Sociedade de Advogados e Owner e Legal Coach de Lawyers Coaching/Desenvolvimento de Performance e Competências Jurídicas – Conselheiro Secional da OAB/SP – Membro da IV Câmara do Tribunal e Ética e Disciplina da OAB/SP – Palestrante da OAB/SP – Presidente da Comissão Especial de Coaching Jurídico da OAB Nacional – Membro da Comissão de Especial de Gestão, Empreendedorismo e Inovação da OAB Nacional – Presidente da Comissão Especial de Coaching Jurídico da OAB/SP (2019/2020) – Membro Efetivo da Comissão de Coaching Jurídico da OAB/RJ – Especialista em Compliance (Insper) – Especialista em Compliance Anticorrupção (LEC) – Especialista em Liderança (FGV – GVlaw) – Especialista em Leadership and Team Development (International Business Management Institute de Berlim – Alemanha) – Certificado em Compliance Anticorrupção (LEC) – Especialista em Direito Processual Civil (CPPG/FMU) – Personal, Professional e Leader Coach pela Sociedade Brasileira de Coaching (SBC) – Associado Instituto dos Advogados de São Paulo (IASP) – Associado à Associação dos Advogados de São Paulo (AASP) – Associado à Associação Brasileira dos Advogados Trabalhistas (ABRAT) – Associado à Associação dos Advogados Trabalhistas do Estado de São Paulo (AATSP) – Palestrante OAB/SP e Escola Paulista de Advocacia – Autor e coautor de obras e relevantes artigos jurídicos.
[2] In Lucas Eduardo Oliveira | Jusbrasil consultado em 02 de dezembro de 2021, às 15hh00min.
[3] Técnico de enfermagem não obtém reconhecimento de covid-19 como doença ocupacional. “Faltou o nexo causal” | TRT18
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